


Prólogo
Era um quarto escuro e empoeirado. Não havia fogo na lareira, pois eles nunca permitiriam isso. Leila estava deitada em sua cama minúscula encostada na parede. Ela tentou colocar sua cama o mais longe possível da porta e das janelas quebradas. O vento a gelava até os ossos à noite. Ela estava exausta após mais um dia de trabalho árduo. Depois de ter apenas um pequeno pedaço de pão no jantar, ainda estava com fome. No entanto, não conseguia dormir; o frio a mantinha acordada.
Ela ouviu uma voz, depois um passo. Alguém estava girando a maçaneta da porta. Ela se escondeu debaixo do lençol. Não teve coragem de se sentar ou confrontar quem quer que fosse. Acreditava que todas as experiências horríveis passariam eventualmente, se ela escolhesse suportar tudo e esperar que o tempo curasse suas feridas. Esse sempre foi seu modo de vida. Ela fechou os olhos e fingiu estar dormindo.
Era seu tio, o marido de sua tia. Ele entrou no quarto, andando na ponta dos pés. Leila sentiu um alívio tomar conta dela. Seu tio sempre foi bom para ela. Quando sua tia não estava em casa, ele trazia algumas escovas e esfregava o chão por um tempo, ou a deixava descansar e comer um biscoito. Às vezes, ele até guardava um pedacinho de linguiça para ela, o que era uma coisa muito difícil de fazer, já que sua tia tinha olhos de águia. Ela sabia de tudo o que acontecia na casa - onde a carne tinha sido colocada, ou quantas garrafas de vinho restavam. Leila costumava tentar pegar um pedaço de queijo para comer; ela ficava faminta depois de todas as tarefas sujas e pesadas que era forçada a fazer. Sua tia percebia quase instantaneamente. Leila quase foi espancada até a morte.
Sua tia a odiava. Leila era uma mestiça, nascida de um dragão e um humano. Ela também era a razão pela qual a irmã de sua tia morreu. A mãe de Leila era apenas uma cidadã comum vivendo na cidade de Porto do Rei, uma descendente normal dos dragões, assim como a tia e o tio de Leila, ocupando o posto mais baixo entre sua raça. No entanto, o pai de Leila era humano. Os humanos, a raça inferior, só podiam ser servos e escravos dos dragões. Leila era a primeira mestiça, uma bastarda, uma meio-sangue nojenta. Sua mãe morreu ao dar à luz a ela, e seu pai ficou tão assustado que fugiu para salvar sua vida. Era um segredo ter uma meio-sangue nessa família. Eles tinham que mantê-la escondida, ou toda a família seria executada por envenenar o sangue sagrado dos dragões. Mas a vida de Leila era ainda pior do que a de um escravo humano. Ela era odiada pelos escravos humanos da casa por seu sangue meio-dragão, e era abusada por suas meias-irmãs e irmãos dragões; eles a viam como uma mancha suja no nome da família.
Durante toda a sua vida, seu tio foi o único que lhe mostrou alguma bondade. Ela fingiu estar dormindo, mas se perguntou o que ele tinha trazido para ela - talvez uma torta. Sentiu a mão dele acariciar gentilmente sua bochecha. Ele afastou seu cabelo e puxou o lençol um pouco para baixo. Ela sabia que ele estava olhando para ela. Às vezes, ele fazia isso, mas seu olhar era amoroso e gentil. Sentiu um beijo em sua testa. Foi a primeira vez que ele fez isso, mas não foi terrível. Então, de repente, sua boca deslizou para o pescoço dela, sua mão esfregando seus seios e entre suas pernas. Suas mãos bestiais a agarraram com firmeza. No início, ela não conseguia entender o que ele estava fazendo. Não parecia um jogo - parecia que ele simplesmente queria seu corpo. Uma sensação estranha e formigante surgiu dentro dela. Ela ficou chocada e abriu os olhos, depois o empurrou com toda a sua força. Ele não esperava essa reação. Seu tio fugiu envergonhado, com medo de que sua tia tivesse ouvido algo.
Leila estava sozinha na escuridão. Um medo profundo explodia dentro dela. Ela estava envergonhada de si mesma. Sentia uma raiva do tio, uma fúria, acompanhada de dor. Antes disso, ela não tinha ideia do que era sentir excitação. Em toda a sua vida jovem, ela nunca tinha sequer se tocado; excitação sexual era algo que ela nunca tinha conhecido. Essa foi sua primeira experiência. Ela não conseguia se perdoar... Sentia algo entre as pernas, uma intimidade secreta que revirava seu interior. Olhou para as paredes empoeiradas. As formas amorfas, a argamassa ao longo da borda de cada pedra, os padrões feios. Ela conhecia cada uma das pedras como a palma da sua mão. Sob a luz fraca da lua fria, chorou em silêncio.
Na manhã seguinte, algo horrível aconteceu. O comportamento nojento de seu tio foi descoberto por sua tia. Um servo humano tinha visto ele entrar no quarto de Leila e relatou esse escândalo para a dona da casa, logo pela manhã, sendo recompensado com um pão inteiro. Seu tio justificou suas ações e culpou Leila por tentá-lo. Sua tia ficou furiosa. Todos os sentimentos de ódio foram liberados de uma vez - a dor que sentia por perder a irmã, o risco constante de esconder uma mestiça, e o fato de que seu marido estava atraído por aquela criatura suja e impura. Ela pegou Leila e a jogou contra a parede, deu-lhe um tapa no rosto e atirou pratos próximos nela. Empurrou-a, e Leila rolou até a base das escadas, ficando quase inconsciente. Sangue escorria de inúmeras feridas em sua cabeça e corpo. Ela sabia em seu coração que sua tia queria matá-la.
Ela mal conseguia abrir os olhos inchados. Seus primos estavam tomando café da manhã como se nada tivesse acontecido, e os servos e escravos humanos cuidavam de seus próprios afazeres. Ela se perguntava se era um fantasma, invisível sob a luz do dia. Os gritos e insultos trocados entre sua tia e seu tio trovejavam no andar de cima. Nesse momento, ela viu o fazendeiro entrar na casa, segurando uma grande cesta de vegetais. Ele entrou para deixar a entrega, deixando a porta ligeiramente aberta. Não havia tempo para hesitar. Ela precisava correr para salvar sua vida.
Leila forçou-se a avançar. Ninguém virou o olhar em sua direção. Ela se levantou e cambaleou em direção à porta. Estava a apenas alguns metros, mas parecia a jornada mais longa que já tinha feito. Pela primeira vez na vida, ela queria escapar daquela casa. Eles sempre lhe disseram que o mundo lá fora seria um inferno para ela, que estaria morta assim que pusesse os pés fora. Comparado a isso, uma refeição quente e meio pedaço de pão seriam o paraíso depois de um dia de trabalho árduo. Ela não tinha desejo de sair. Mas agora, não tinha outra escolha.
Finalmente, ela alcançou a porta. Abriu-a mais e saiu. Antes que pudesse mover outro músculo, um grito explodiu atrás dela. Sua tia a tinha visto. Leila correu com todas as suas forças. Se voltasse, tinha certeza de que seria espancada até a morte. Ela correu e correu. Todas as pessoas na rua estavam além de chocadas ao vê-la. Sua tia e primos estavam atrás dela. Leila se sentia fraca demais para continuar correndo, mas não podia parar. Virou à esquerda em outra rua. Virando a cabeça, viu que sua tia estava se aproximando. Estava tão assustada de ser pega novamente. Antes que pudesse reagir, encontrou-se colidindo com algo duro e metálico.