


4. O leite refrigerado
Leila acordou sobressaltada com um estrondo alto vindo de algum lugar no andar de baixo. Sentiu seu coração pular com o barulho repentino.
Ela rapidamente se levantou, vestiu um simples vestido de algodão e correu para a porta. Já fazia três dias desde que Leila havia retornado à casa de sua tia. Não era surpresa que, nem por um único dia, ela tivesse recuperado sua paz.
Assim como Thorn lhe dissera, a casa estava completamente esvaziada por sua família; nem mesmo uma única panela havia sido deixada para ela. Leila imaginou que sua tia devia estar escondida em algum lugar longe da capital agora, e que não voltaria até que as coisas se acalmassem. Era melhor assim. Ela poderia descansar por alguns dias e usar esse tempo para pensar sobre seu futuro. Ficar com sua família cruel era a única coisa que ela queria fazer agora. Mas, aparentemente, o príncipe não podia nem mesmo permitir isso.
Leila desceu correndo as escadas e avistou uma pilha de tecido preto e azul, rasgado em pedaços, no final das escadas. Era a terceira vez que ela encontrava uma pilha assim, e eram claramente de Thorn. Por que ele sempre rasgava suas roupas? Ele não parecia ser do tipo que andava por aí nu. Mas, por dias, ela tinha uma sensação persistente que a incomodava; ela não conseguia reprimi-la.
Leila sentia que alguém estava em seu quarto enquanto ela dormia, e acreditava que essa pessoa poderia ser Thorn. Mas, na verdade, Leila ainda não sabia nada sobre os dragões reais. Eles raramente apareciam em público e quase ninguém sabia nada sobre eles, então Leila não tinha ideia do que ele estava tramando. Leila manteve suas suspeitas no fundo da mente enquanto descia para o andar térreo.
Meia dúzia de trabalhadores carregando enormes baús contendo todo tipo de coisas entravam e saíam da casa, como uma trilha de formigas construindo um ninho. Ela foi até a cozinha, que estava passando por uma grande reforma, e finalmente encontrou a fonte do barulho.
“Hum... Olá?” Leila tocou no ombro de um dos trabalhadores. Ele estava empunhando uma enorme marreta e a batendo em uma parede não estrutural. “Com licença?”
O homem parou de balançar a marreta e olhou para ela. Seu rosto estava encharcado de suor, seus olhos vidrados.
“Posso perguntar por que você está derrubando a parede?” Leila perguntou educadamente.
“Eu não sei. Um cara me pagou para fazer isso. Então estou derrubando,” o homem respondeu de forma direta, “E tenho mais cinco para cuidar. O tempo está passando.”
Ele então se afastou de Leila e pegou seu martelo novamente. Parecia impossível interferir em sua determinação de destruir a casa dela. Tudo o que Leila podia fazer era sair dali para evitar perder a audição.
Felizmente, ela viu Ben entrar para contar os baús. Quando estava prestes a perguntar sobre as reformas, ouviu uma voz familiar chamando seu nome do jardim da frente.
“Leila! Leila? Você está aí?” A voz pertencia a um jovem de aparência saudável, um dragão cinza que morava do outro lado da rua. Ele ganhava a vida entregando leite aos cidadãos do Grey Below.
“Oi Arthur!” Leila cumprimentou o rapaz, “Como você está?”
“Na mesma.” O jovem corou. “Acabei de voltar de buscar leite fresco no Grey Above.” Ele apontou para uma pequena carroça estacionada na rua estreita. “Ainda está gelado... Pensei em te dar um pouco primeiro.”
O leite de Arthur tinha sido uma salvação para Leila ao longo dos anos. Muitas vezes, ele lhe dava uma garrafa extra sem que sua tia soubesse. Ela duvidava seriamente que teria sobrevivido sem essa nutrição.
“Obrigada,” Leila sorriu para ele, “como sempre.” Sua voz foi rapidamente abafada por outro estrondo alto.
“A casa está sendo reformada?” Arthur levantou a voz e olhou para todos os trabalhadores entrando e saindo.
Leila não sabia a resposta para essa pergunta nem como explicar a situação. Em vez disso, disse, “Vamos pegar o leite primeiro.”
“Certo.” Arthur assentiu e sorriu de volta enquanto eles saíam juntos. “Onde estão sua tia e seu tio? Você pode sair agora?”
“Essa é uma longa história... Eles não estão aqui,” Leila suspirou, “Mas sim, acho que está perfeitamente bem eu sair agora.”
Leila passou pelo portão da frente e olhou ao redor. A rua onde ela havia vivido toda a sua vida de alguma forma parecia estranha para ela. Era uma rua decadente, com casas caindo aos pedaços espalhadas por ela. Todo o Grey Below era o fundo do poço de King’s Harbor, como um porão há muito ignorado. Seus moradores eram os mais pobres do reino. Até os cavaleiros raramente vinham patrulhar, mas quando vinham, sempre capturavam alguns infratores por roubar de outros distritos da cidade.
“Apenas o leite mais fresco dos frescos.” Arthur retirou uma grossa camada de palha úmida e revelou dezenas de garrafas de leite fresco e gelado. “Escolha à vontade!”
Leila sorriu amplamente e começou a admirar a carroça cheia de líquido delicioso e cremoso. Mas antes que tivesse a chance de escolher, um grupo de vizinhos curiosos se reuniu ao redor.
“Arthur? O que diabos você pensa que está fazendo, garoto?” Uma velha desdentada gritou, “Por que ela recebe o leite antes de mim? Minha casa vem antes desta!” Ela olhou para Leila e notou sua aparência estranha. “Oh, pelo amor de Deus! Quem é essa garota horrível?”
Outra velha com problemas de visão estreitou os olhos para Leila enquanto se apoiava pesadamente em sua bengala. “Nunca na minha vida encontrei uma mestiça! Você está morando nesta casa? Onde está aquela família adorável que vivia aqui antes? O que você fez com eles?!”
Mais vizinhos curiosos e mal-intencionados se juntaram contra Leila.
Leila se encolheu atrás da carroça. Arthur queria ajudá-la, mas estava sobrecarregado pelas críticas por não entregar o leite na ordem correta. Em poucos momentos, todos na rua tinham enfiado a cabeça para fora das janelas ou saído para assistir.
Não foi uma escolha sábia sair de casa, afinal. Leila recuou para o jardim da frente enquanto a multidão se aproximava dela. De repente, ela esbarrou no peito nu e duro de alguém e quase caiu. Ela olhou para cima e era Thorn. Ele envolveu o braço em sua cintura e a impediu de cair a tempo. Ben estava ao seu lado e lhe entregou uma nova jaqueta azul-marinho. Por que ele está seminu de novo? Leila pensou, E de onde ele veio? A casa nem tem porta dos fundos!
Ele gentilmente puxou Leila para trás de si e enfrentou a multidão. Todos ficaram chocados ao ver um homem tão bonito. Thorn colocou sua expressão fria habitual e olhou para a multidão com desdém.
“Esta casa foi requisitada pela Guarda Real. Ninguém tem permissão para entrar sem autorização adequada,” Thorn anunciou com sua voz mais gelada, “Aconselho todos a voltarem para suas casas e nunca falarem sobre o que viram hoje, ou a punição certamente virá.”
Assim que ele pronunciou sua última palavra, um esquadrão de cavaleiros dourados chegou à porta.
Como bolinhas de gude rolando em um chão liso, a multidão imediatamente se dispersou, deixando apenas Arthur, que segurava uma garrafa de leite gelado. Thorn olhou para ele sem virar a cabeça. “Ben?”
“Sim, meu príncipe,” Ben respondeu.
“Pague o jovem pelo leite e depois o mande embora educadamente.” Thorn terminou sua última ordem e entrou na casa.
Arthur nunca pensou que encontraria um príncipe. Ele entregou o leite a Ben e queria dizer algo a Leila, mas descobriu que estava sem palavras.
“Obrigada, Arthur.” Leila estava completamente chocada com o que acabara de ouvir e estava desesperada para perguntar a Thorn o que ele quis dizer com aquilo. “Nos vemos por aí então!”
Arthur a observou se afastar enquanto coçava a cabeça, perplexo e enterrado na decepção pela perda de seu primeiro amor.
Leila correu para dentro e procurou por Thorn, que estava verificando as paredes na cozinha. Ele sabia que Leila estava chegando, mas não queria reconhecê-la.
“Hum... Príncipe?” Leila perguntou em voz alta, caso ele não pudesse ouvi-la em meio a todo o barulho, “Desde quando esta casa foi requisitada pela Guarda Real? Por que eu não fui informada?”
Thorn não respondeu, movendo-se para o outro lado da cozinha para observar uma parede quebrada.
“Por favor?” Leila implorou.
Thorn olhou para ela brevemente, depois voltou a olhar para a parede. “Desde agora.”
“Então onde eu vou ficar?” Leila arregalou os olhos.
“Em qualquer lugar que lhe agrade.” Thorn assentiu em aprovação ao trabalho de seus homens, depois voltou para o jardim da frente. “A partir de agora, um esquadrão de cavaleiros patrulhará esta rua diariamente. Este distrito também precisa de mais segurança. Eu virei todos os dias também. Quanto a você,” ele deslizou seu olhar misterioso de volta para Leila, “espero que você tente entender algo.”
Leila olhou de volta para ele, com o coração disparado.
“Não importa onde você pretenda viver sua vida, você não vai escapar de mim novamente.” Então, ele saiu pelo portão e deixou a casa com Ben.
As bochechas de Leila estavam pintadas de um vermelho rosado. Ela estava feliz que Thorn não viu seu rosto queimando por causa dele. Mesmo com suas próprias suspeitas sobre as motivações de Thorn, ela ainda não ousava perguntar diretamente a ele. Como uma mestiça, ela não tinha o direito de desobedecer a um príncipe. Mas os humores constantemente cambiantes dele estavam seriamente confundindo-a. O príncipe estava claramente zangado com ela por algum motivo desconhecido novamente.
Ela subiu as escadas e se sentou ao lado da janela em seu quarto enquanto pensava nele. Ele a havia completamente enfeitiçado. Sempre que estava perto dele, seu coração batia descontroladamente. Mas, ao mesmo tempo, ela não tinha ideia de quais eram suas reais intenções, já que sua atitude e ações nem sempre eram consistentes.
Encostando-se na janela, ela notou um novo arranhão na moldura de madeira. Surpreendentemente, não era um arranhão comum, mas um buraco profundo, como se tivesse sido feito pela garra de um monstro. Leila estremeceu. Agora, com cada peça de evidência que ela havia observado, ela chegou a uma conclusão inacreditável. Thorn deve ter voado pela janela dela! Ela precisava provar isso, e esta noite era o momento perfeito.